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Inventário do Abandono

Agnaldo Farias

 

Inventário do abandono é o nome da obra (será mesmo uma obra?) em processo, uma combinação de armários e estantes desiguais, que preenche praticamente toda a parede da esquerda do atelier de Marco Tulio Resende, melhor dizendo, aparede do fundo, considerando-se que ela fica no extremo oposto da entrada do salão largo e pouco profundoque ele transformou em oficina, depósito, escritório, sala de estar e até mesmo confortável dormitório. Situado sob um pequeno conjunto de lojas num aprazível bairro de Belo Horizonte, construídoa beira de um terreno íngreme, o ateliê de agora resultou de um espaço perdido, abaixo do piso das lojas, invisível aos olhos dos passantes e moradores, que o artista comprou, reformou, transformando-o nos vários espaçosmencionados, além de um belvedere privilegiado cuja vista dá para o casario entorno, esparramado pelas laterais de umadas montanhas onde a capital mineira foi implantada.

 

Inventário do abandono nasceu como que por acaso e aos poucos. Foi sendo produzida despretensiosamente, sem que o artista soubesse no que ia dar, sem projeto e planejamento, sem propriamente uma intenção. Um depósito resultante do acúmulo de coisas disparatadas que ele, movido por fascínio e afeição a manifestações singelas e incomuns, binômio que com esse ajuntamento termina por provar que se trata de uma particularidade de quase todos os objetos existentes, foi catando aqui e ali ao longo dos anos, juntando ao núcleo inicial que possivelmente reteve de sua própria infância, daquilo que, mais crescido, foi resgatando de sua família, da casa dos pais e irmãos, de amigos, e que foi se somando ao colhido em suas inúmeras viagens, das internacionais as domésticas, das frequentes incursões pelo interior de Minas, pelas serras, roças, pela imensa Minas histórica, como também pelas vilegiaturas em BH, as caminhadas ociosas, as saídas cotidianas para as compras caseiras em supermercados, padarias, postos de gasolina, outros locais que mecânica, diária e desatentamente atravessamos, mas não ele, pois é evidente que sua atenção nunca baixa a guarda, movido pela nítida certeza de que a alegria e a surpresa podem acontecer agora. Marco Tulio deixa-se atrair por tudo quanto é coisa, variada quanto a forma e finalidade, sobretudo por aquilo que displicentementese acomoda nas lojas de artesanato, armarinhos, armazéns de secos e molhados, mercados, bancas de jornais, de camelôs, na qualidade de subproduto, de escolho, detritos que a grande máquina industrial vai deixando a margem enquanto roda pesadamente.

 

Apesar da aparente barafunda das prateleiras, passando-se os olhos nota-se que tudo está relativamente organizado em filas e agrupamentos, e que há uma evidente predominância de bichos sob a forma de enfeites, miniaturas, brinquedos e, em número maior ainda,representações humanas. Uma multidão de bonecos, fetiches religiosos, relicários, estatuetas, ex-votos, cabeças e bustos de manequins, homenzinhos e super-heróis em miniaturas, realizados em madeira, barro, metal e plástico, acotovelam-se entrefotografias variadas, de si, da família, de obras do próprio artista, cartões postais, além de objetos de uso direto – peças de roupas variadas, adereços como colares e faixas-, utensílios e artefatos -instrumentos musicais, máquina de escrever, chaves-, entre tantos outros passíveis de serem manipulados.

 

O importante é abrir-se ao mundo, diz-nos as estantes superlotadas que perfazem esse Inventário de Marco Tulio, que se religam ao passado através dos objetos que um dia, o artista ou qualquer um de nós que compartilha o mesmo universo imaginário, admirou-se deles, ingenuamente cultuou-os ou apenas os utilizou. Olhar para esses objetos, reconhecer sua procedência ou simplesmente sua identidade, significa religar-se a eles no momento em que se os vê, no presente, posto que estão ali, à mão. A comunicação com essa sorte de objetos leva ainda, claro que mais ainda ao artista, responsável pela reunião sistemática e incansável daquilo tudo, uma comunhão comseus desconhecidos autores, uma tentativa de compreensão, um elo com aqueles que, produzindo-os, tiveram a intenção, mesmo que desajeitada, de agradar, entreter, insistir em lembrar a existência de um mundo ao lado deste em que vivemos, voltado ao encantamento, a brincadeira e também à uma dimensão mágica. Uma realidade paralela ou camada imaginativa abaixo do chão cotidiano, cujo acesso só acontece quando nos abandonamos a contemplação ou eventual manipulação desses objetos, e por força da potência que deles emana.

 

 

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